As pessoas têm o hábito de dizer que “conviver entre pessoas é muito difícil”, outras falam que o “ser humano é o lugar do sempre duvidável”, outras ainda mais radicais dizem que “quanto mais conhecem as pessoas, mais se apaixonam pelos cães”. Acredito que em algum momento de nossas vidas até concordamos que esses desabafos da consciência humana, é verdade, nem sempre é fácil conviver com as pessoas, afinal somos ao mesmo tempo uma unidade desconhecida e uma multidão enfurecida.
Que significa isso? Bom, enquanto pessoas sempre somos desconhecidos, não damos conta de nos equilibrar nessa vida cheia de compromissos e de urgências que devem receber respostas ágeis e plenamente sustentáveis em todo momento. Esse universo que cada um é em si mesmo um desconhecimento, o outro que nos olha e convive conosco tem acesso apenas a uma pequena parcela do que somos e quando digo pequena parcela é para se entender pequena mesmo. O que somos não damos aos outros por inteiro, não damos a nós mesmos o que somos, não daremos aos outros. Somos sempre um mistério que se desvela a nós mesmos dia após dia como novidade assombrosa entre o bem que podemos praticar e praticamos e entre o mal que podemos praticar e praticamos.
Ao mesmo tempo somos uma multidão enfurecida. Conviver é deixar que a multidão nos afete de alguma maneira e nos afetando, nos tornamos parte dela. Um exemplo clássico é o caos do trânsito de veículos e de pessoas. No trânsito de veículos (conduzidos por pessoas) tudo gera impaciência, esbarra na imprudência e fomenta palavras e atos de insanidade. Quem nunca, dentro de seu carro, não xingou ou carro da frente, não mandou andar mais rápido, não disse que alguém era “burro”? Mas o carro que está atrás pode estar dizendo o mesmo sobre nossa conduta no trânsito. As buzinas (ou buzinaço) são inevitáveis. Carros amassados, ânimos exaltados e assim vamos reproduzindo no meio o equívoco da multidão enfurecida.
E nos passeios? Nas filas de banco, farmácias e até nas igrejas!!! Multidões enfurecidas. Como vivemos com pressa, todos devem ter a mesma pressa que nós... render no tempo e no espaço o mesmo que rendemos. Nas calçadas, encontrar com um ou mais idosos que caminham tranquilamente alheios à nossa pressa é um tormento, quase corremos o risco de empurrar os pobres idosos para rua a fim de rendermos e produzirmos ainda mais a loucura da sociedade enfurecida. E se encontramos, no meio do passeio, duas pessoas ocupando toda via com um belo “papo de comadres” ... supostamente querendo atrapalhar nossa evolução capital. Pronto! A vontade de gritar: saiam da minha frente, vira um sutil e contido, “com licença!”. Somos ótimos atores, quando queremos. Oi? Quando vejo alguém bebendo uma cerveja, numa pizzaria, em um café-bar em plena terça ou quarta-feira? É um desocupado ou herdeiro... somos uma multidão enfurecida, não podemos parar, mas devemos julgar, culpar e enfrentar uma guerra imaginária que criamos. Será que nos tornamos homens e mulheres malvados?
Percebam... apenas 00,1% do que podemos produzir, na pessoalidade e na multidão, com a multidão e para a multidão. Paz é apenas um poema, perdão é para os covardes, amor é para os desocupados... somos o frenesi social, a impaciência mundial e o resultado coletivo propenso à síndrome de Burnout. Ainda não nos damos conta, mas as farmácias nos agradecem...
Quando dermos conta, quem sabe tarde demais, perceberemos que enfrentamos demais os malvados e nos igualamos a eles. Jesus é Deus e nos comunica a sabedoria do Eterno. Não enfrenteis quem é malvado, e por qual razão? A mais óbvia possível... se você enfrentar os malvados deverá usar as mesmas armas que eles ou até piores e o resultado final, embora possa nos agradar, porque nos vingamos ou porque “vencemos”, teremos a nítida sensação de que nos igualamos aos males produzidos em nossas vidas à vida do outro.
Já não é sem motivo que os frutos do Espírito são paciência, bondade e mansidão! Lembrem-se esses frutos não nos tornam “bobos” sociais, mas nos lembram qual nosso lugar na história da vida em Deus. É neste espaço que não nos localizamos como colaboradores do caos, mas como operadores do bem, da justiça e da verdade. Aos maus que optam por esse lugar, deixe-os ali, quanto a nós, sigamos em paz. No trânsito da vida o “vencedor” não é o que chega primeiro, extenuado, cansado e mutilado pela insanidade da vida presente, vencedor é quem chega, apenas chega, vivendo como filho ou filha de Deus, que tem um outro olhar sobre a vida, sobre as pessoas e sobre as situações. Apenas chega e vive.
Nós não somos obrigados ao “olho por olho, dente por dente”. Não! Nós nos obrigamos a isso, nós remodelamos a sociedade e a vida a esse tipo de caos. Não! Não somos obrigados a obrigar a vida a nos tratar como números, não somos escravos de redes sociais, não somos monstros da insanidade social. Se olharmos o Cristo veremos o quanto Ele viveu e percorreu o caminho do acolhimento, da misericórdia e da paz, sem ser um “tonto social”.
Irmãos e irmãs, não enfrentemos quem é mau, aprendamos a oferecer ao mundo em que vivemos o que é bom e justo, quanto a isso, não devemos virar nossas costas ao que agrada a Deus em nossas pequenas almas. Abraçar a vida que está em nós e nos outros, compreender que podemos contribuir para um mundo melhor é nosso trabalho, operar na graça e no dom do Espírito Santo de Deus para sermos comparsas de uma multidão enfurecida. Que sejamos homens e mulheres livres o suficiente para nos localizarmos no seio do amor da Trindade Santa e ali nos movermos, sermos todos de Deus para esse mundo caótico. É em Deus e somente Nele que o que somos pode ser entendido como parte de um projeto que nos eleva do desconhecimento de nós mesmos, para o entendimento do que somos em Deus e para Deus e deixaremos de ser a multidão enfurecida para sermos “um” em Deus e, portanto, sermos “um” no amor de Deus.
Neste espaço podemos ver as obras do amor de Deus em nós e nos irmãos e irmãs. Não, não nos tornamos pessoas malvadas, o Dom de Deus que opera em nós não permite que sejamos maus. Trazemos em nós as marcas do bem. Ainda somos capazes de gentilezas sociais, não precisamos reproduzir o mal, podemos ser gentis no trânsito da vida, podemos cooperar para que os outros possam sentir segurança de um bom papo, podemos nos alegrar com a possibilidade do descanso do outro e cooperar para nosso próprio descanso. Podemos ainda nos alegrar contemplando a vida que pulsa em nós e que com o pulsar da vida do outro construirmos a civilização do amor que é o Reino de Deus. Sorrir com as crianças e impedir, por todos os meios que elas pereçam na miséria e na fome. Podemos nos ver livres e coibir todo e qualquer tipo de preconceito. É assim, que não enfrentamos os malvados, mas cooperamos para que o mundo à nossa volta seja melhor...
Coragem...
Pe. Jean Lúcio de Souza